quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O que não tem governo, nem nunca terá*

Há dois dias li sobre uma decisão judicial que abria brechas para reversão sexual. Emudeci. Li também uma outra decisão que entendeu que espancar a filha com fio de TV é apenas proteção. O Poder Judiciário brasileiro, machista e opressor, tem revitimizado as minorias. 
Simone de Beauvoir alertou: "Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes, você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida". Ouvi da Licya que uma vez mulher e LGBT a atenção é redobrada, ou o sistema nos engole. Sim, Amélie, "são tempos difíceis para os sonhadores". Censuraram peça teatral com atriz trans e exposição queer, querem negar a existência LGBTQIA+ ao tempo que o nome mais comentado do Rock in Rio é o de uma drag (Pabllo Vittar, te venero). Uma pausa. O Brasil é o país que mais procura por trans no RedTube e o que mais mata trans no mundo. Contraditório, não? 
Ao contrário do que propagam por aí, a espécie humana não é a única homossexual e não são todos os casais homoafetivos que querem ter filhos (sim, podemos). Casal não é só homem e mulher, filhos não são apenas biológicos, cultura não é só o que você gosta (não acredito que em pleno 2017 eu estou repetindo isso). 
O inglês Stephen Fry lembrou no documentário Out There que acontece um homicídio por dia por homofobia em nosso país. Que a lei (que criminaliza a homofobia) não passa por causa de bancadas conservadoras. A risada que se ouve no referido vídeo ecoa nos meus ouvidos sempre que leio que a ditadura não existiu e que é necessária a intervenção militar. Todos estão surdos, Roberto Carlos. E o deboche está escancarado quando usam uma condição para diminuir (gritam viado/sapatão como ofensa, né, Dante?), afinal, qual a graça de ser preconceituoso/a? 
Nos últimos dias tentei contar quantos relatos de homofobia intrafamiliar já ouvi, sem sucesso. Os piores foram confidenciados por adolescentes: "Você está louco/a", "não é normal", "eu não aceito um filho gay dentro da minha casa". A orientação homo é tão normal quanto a hétero, é uma questão de sintonia, não é uma escolha. Pense bem: Quando você resolveu ser hétero?   
A condição vem de dentro para fora, a opção vem de fora para dentro. Se você é hétero convicto, olhe, não há influência que te reverta. O país tropical que era conhecido por sua hospitalidade agora é conhecido por sua intolerância. O que acontece anualmente no Brasil é um verdadeiro "homocausto" (quem quiser saber mais sobre os dados da violência, sugiro que curta a página Quem a Homotransfobia Matou Hoje ? no facebook).
Fora do Brasil, além das já ditas "clínicas de cura", existem campos de concentração e penas de morte... Então, que tal dar uma pausa nos memes? Que tal parar de desmerecer o nosso SUS? A pior homofobia é a infrafamiliar, algumas famílias anseiam por tratamentos de reversão sexual, principalmente de crianças e adolescentes sem voz. Não são casos isolados. Cada caso de violência contra pessoas da comunidade LGBTQIA+ importa e deve ser estudado como tal. Nenhum processo, seja judicial ou não, pode abrir precedentes para o retrocesso. 
Até que ponto a “Justiça” pode controlar atos de conselhos de classe? Há uma memória que não pode ser ignorada: a dos tratamentos desumanos, das torturas físicas e das psicológicas. Uma comunidade inteira precisa de respeito, de liberdade, de oportunidades reais de estudos e trabalhos dignos. Precisa de acesso efetivo à justiça para que cada pessoa possa usar o seu nome, identificar o seu gênero, para dispor do próprio corpo, para casar e ter filhos se quiser, para punir a violência e a morte dos seus (dentre tantos outros direitos básicos), enquanto nada disso é regulamentado. A OMS já ditou: A homossexualidade não é doença. E eu sigo acreditando nos cartazes coloridos que gritam que o amor é o remédio e que amar é um direito de todos.

*Sim, o título do texto foi inspirado na canção O que será (À flor da pele), do Chico Buarque.